Os que fazem transporte clandestino são verdadeiros morcegos?

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Por Cícero Mendes

?A concorrência predatória dos clandestinos, por exemplo, são verdadeiros ?morcegos? minando sangue das empresas, levando 20%, 30% ou mais do setor formal. Transportes concorrentes, cooperativas, transportes alternativos sugam todo dia o sistema em deslavada concorrência desleal, e sem pagar imposto?. A afirmação é do advogado Paulo Roberto Cannizzaro. Especializado em administração pública, consultor de empresas, com atuação no setor de transportes coletivos e titular da empresa de auditoria Cannizzaro&Associados Sc/ Ltda, sediada em Recife, o advogado faz um relato sobre a situação do setor de transportes em Sergipe. Na opinião dele, o Estado tem sido débil no combate ao transporte clandestino. ?O Estado é fraco nisto. Ao contrário, é quem alimenta tal distorção. Em algumas cidades este combate foi sistemático, objetivo e estruturado. O correto, e devia ser meta dos governos, é serem autênticos protetores das empresas, e das atividades legais, e não ao contrário, destruidores de empresas?, aponta Cannizzaro, que destrinchou vários outros problemas enfrentados pelo setor de transporte.

JORNAL DA CIDADE ? Como consultor também no setor de transporte há mais de 20 anos, em várias cidades do país, como se enxerga essa atividade econômica, em especial em Aracaju?

Paulo Roberto Cannizzaro ? Testemunho em várias cidades brasileiras, salvo algumas exceções, uma deteriorização importante no setor e nas permissionárias de transportes, urbanas, intermunicipal e rodoviárias. A relação do empresariado com o poder público tem sido convivência doentia, desigual e mal definida. O Estado tem gerido o transporte tratando-o muitas vezes como conteúdo político, quando ela é matéria técnica. A lei de permissões e concessões, após a Constituição de 1988, maltratou mais as permissionárias. A permissão está localizada em lugar desfavorável juridicamente, a dos contratos de adesão, como se fosse uma relação por conta e risco das empresas, na prática abandonadas de seguranças indispensáveis. O Estado não tem cerimônia em controlá-las com normas rígidas, cobra-se tudo delas, um monte de exigências, regramentos de tutela na operação dos serviços e que inclui até imposição de investimentos em frota, no entanto não cuidam do essencial: garantir a saúde financeira das empresas.

JC ? Então, neste sentido, é responsabilidade do Estado cuidar da saúde das empresas?

PRC ?
Esta é a questão essencial. Há um entendimento até juridicamente pacificado, que o Estado na permissão de serviços públicos deva cuidar sim do equilíbrio financeiro desses contratos. Há noções idênticas às concessões públicas, igual essência de longevidade, relação continuada, duradoura e de serviço regular, havendo, pois, uma responsabilidade objetiva. Em contrapartida, é intolerável que haja permissionárias a mais de 30, 40 anos, como se estes contratos fossem precários, provisórios, ficando o serviço a mercê da própria sorte, atividade por conta e risco das empresas. Permissionárias de serviço público nada mais são do que concessionárias, e como tal, deveriam ser assegurados a elas garantias suficientes e exigíveis, de toda ordem, financeira, operacional e mesmo jurídica, para que pudessem prestar serviço de boa qualidade, e capazes de bem atender as necessidades da comunidade.

JC ? Afinal, em que consiste esse equilíbrio econômico financeiro na relação do poder público com as empresas de ônibus?

PRC ? Não é só importante ter-se tarifas módicas, baratas, passagem de ônibus acessível ao bolso do usuário. A tarifa precisa ter junto a essa noção de modacidade, o conceito constitucional de ser justa, capaz de remunerar a operação.
O desafio é harmonizar a capacidade da população pagá-la com a garantia da retribuição justa. Governos locais querem fazer, muitas vezes, política social, mas com o dinheiro alheio, e quem paga a conta é o empresariado local, e não deve ser diferente em Aracaju. A tarifa não pode ser moeda política, em atender só reclames públicos. Precisa comportar noções de custos da operação, lucro na atividade e sem isto não se alimenta saúde no sistema. Não adianta tarifas baixas se as empresas não pagarem impostos da atividade, ou criar-se instituições doentes, e operando mal. Não é política de crescimento social o Município fazer da tarifa balcão social, sem cuidar da remuneração adequada e eficiência de bons serviços. Tarifa sem o contorno do preço justo é impor ao social um outro custo mais caro, a contraprestação também injusta, serviço ruim, longe das expectativas dos usuários.

JC ? Sempre houve impressão de que as empresas de transportes eram autênticas minas de ouro, uma atividade bem remunerada. Isto é verdade?

PCR ? Absurda falácia, visão de quem não conhece a atividade. Foi-se o tempo que o transporte era remunerado também para atender necessidades de investimentos. Novos atores perversos deterioraram os transportes públicos. Empresa liquida financeiramente neste setor, em muitas cidades, é rara hoje. A maioria enfrenta dificuldades estruturais. A concorrência predatória dos clandestinos, por exemplo, são verdadeiros ?morcegos? minando sangue das empresas, levando 20%, 30% ou mais, do setor formal. Transportes concorrentes, cooperativas, transportes alternativos sugam todo dia o sistema em deslavada concorrência desleal, e sem pagar imposto. Cumprimento de linhas sociais imputadas às empresas, inibição de tarifas justas, custos descasados com remuneração fazem disto um caldo grosso de problemas.

JC ? A tarifa não reflete assim adequadamente as necessidades de caixa das empresas?

PRC ? Tarifa é só uma face da questão, majorá-las não é a solução. Mas também não foi feita para atender pedidos sociais, porque deve ser equação técnica, comportando a absorção da capacidade de operar bem o serviço. Não adianta pendurar o sistema com ônibus, linhas superpostas, alimentar ineficiências, custos excessivos no sistema, promover concorrência e autofagia entre as empresas, frotas de ônibus rodando vazios e sem ocupação, estudantes que nem sempre são estudantes, enxurrando-se o sistema com gratuidades excessivas, ou seja, fatores que juntos produzem só falta de resultado financeiro no sistema, aumentando-se de forma perdulária o próprio custo operacional e sugando todo dia também o plasma financeiro das empresas.

JC ? O Estado tem sido débil no combate ao transporte clandestino concorrente?

PRC ? O Estado é fraco nisto. Ao contrário, é quem alimenta tal distorção. Em algumas cidades este combate foi sistemático, objetivo e estruturado. Recife foi um exemplo, de intervenção dura, colocaram uma verdadeira barreira de cinturão nos portais de entrada da cidade e assim o transporte irregular foi banido, não rodam no perímetro urbano. Isto irrigou saúde às empresas e melhorou o serviço, mas é preciso coragem para fazer isto, banir esta concorrência, cheia de riscos, sem nenhum compromisso com a qualidade, noções de segurança, conforto ao passageiro e validade jurídica. O correto, e devia ser meta dos governos, é serem autênticos protetores das empresas, e das atividades legais, e não ao contrário, destruidores de empresas.

JC ? A dificuldade deste setor também não é resultado da má gestão do próprio empresariado?

PRC ? Na maioria dos casos, seguramente isto não é verdade. Há um fato relevante nesta questão de gestão e não deve ser diferente em Aracaju. Algumas delas têm 40, 50 anos de vida. Este empresariado tem mesmo é muita coragem. Levante-se a história dos empresários, na sua maioria, e aqui em Sergipe, por exemplo, deve ser gente que também mexe com transportes a várias décadas, tem uma folha de serviço prestado ao Estado. Empregam permanentemente, sem muitos benefícios de garantias para a atividade, submetidos a uma legislação perversa, uma carga tributária absurda, sobretudo trabalhista. Estão aí porque tem transporte no sangue e fazem mesmo parte da história do Estado. Na maioria este empresariado é dedicado, é gente séria e do bem, conhece a atividade e tem sido ao contrário, eficiente na gestão, com altíssimos padrões de criatividade para conviver com tantas dificuldades no setor. O Estado descontinuado, burocrático, raramente enxerga isto.

JC ? O senhor acabou de referir-se à carga tributária alta. Neste setor não há nenhuma imunidade?

PRC ? Falar em reforma tributária hoje irrita, ver a incapacidade do Estado em adotar um regime tributário mais justo. Ficamos atrasados em relação ao mundo. A nação tributa excessivamente a atividade produtiva e este setor não foge a regra, sobretudo com os encargos sociais sobre folha de pagamento, imposição sobre a grande mão-de-obra aplicada na operação. Rentabilizar bem a atividade desonerando-a de imputação tributária seria um caminho, desde a aquisição dos insumos de custos, na folha de pagamento, ou mesmo na carga tributária mais beneficiada para o setor. Baniu-se a tendência de alíquotas diferenciadas por atividades da economia, como tivemos no setor de transporte, no caso do IR, mas um setor tão essencial deveria ser beneficiado por uma tributação diferenciada. Mais liberto de custos tributários, o Estado estaria efetivamente produzindo tarifas justas e bem estar social, assumindo seu papel de bancar parte desta conta, e sem empurrar a fatura para a economia privada.

JC ? Afinal, por onde passa a solução dos transportes coletivos?

PRC ? Políticas estáveis, continuadas, que releve o papel do consumidor, mas que respeite o direito das empresas. Não só impor obrigações, mas cuidar dos direitos e garantias na exploração atividade. Transportes públicos pressupõem respeito a esse equilíbrio econômico financeiro para execução dos serviços. Sem estabilidade do serviço e de políticas continuadas em transporte isto não se resolve. Sob legislação mutável demais, volátil, modificada de governo a governo, alguns mal sabendo o que seja ônibus, não vamos avançar. Na Europa, testemunhei que gestores públicos da área de transportes são técnicos de carreiras, e ao acabarem seu ciclo de gestão, são transferidos para Conselhos de Administração das próprias empresas públicas, mantendo os fundamentos estruturais dos transportes públicos, sempre estáveis. Uma nova orientação de governo faz melhorar a eficácia, a eficiência, a efetividade do sistema, mas se não muda fundamentos da administração cientifica determinada para a atividade.

JC ? Como o empresariado deveria induzir este processo de mudanças estruturais?

PRC ?
Dentro de padrões de linguagem técnica o empresariado deve ser inciso na nitidez das dificuldades do setor. A relação do empresariado com o Estado não pode ser só tarifa, nisto só se consegue resultados episódicos. O Estado deve enxergar mais as debilidades financeiras do setor, compreender a complexidade da atividade, a atual limitação de capacidade contributiva de recolher tributos inclusive. Muitas estão com dificuldades reais de dívidas, sem capacidade de investimento, e este painel precisa ser publicamente discutido com a sociedade. Programas de refinanciamento das dividas tributárias, tais como PAEX, mostram-se inclusive insuficientes para enfrentar o passivo, e neste aspecto deveria haver aplicação até de prazos mais elásticos, como os permitidos recentemente aos clubes de futebol. Até mesmo as demonstrações contábeis do setor precisam refletir mais corretamente a realidade do sistema, traduzindo as intervenções necessárias de mudanças. O empresariado tem cerimônias, medo deste diálogo com o poder público, mas o Estado não é Deus. Eles não podem tudo. Representam só a sociedade, e ela mesma não está satisfeita com a gestão dos transportes públicos. Unificar iniciativas, agregar o tom do discurso e exercer mais prerrogativas e direitos legítimos, me parece improrrogável, além de cumprir obrigações. Um choque de iniciativas para exigir uma política de transportes sustentada e continuada é preciso. Não há espaço de esforços descontinuados e isolados.

Entrevista publicada no Caderno Municípios – Jornal da Cidade, edição do dia 4 e 5 de maio de 2008.

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